Devasso sentimento



A troca de olhares era nítida e desmedida: enxergaram mais do que retina. Muito mais.
E a cada olhar aniquilador, transcorria em seu corpo uma energia luxuriosa. Chegou a pensar ser tamanha indecência após longo período de absoluto menoscabo.
Por tempos, a gana de saciar aquele desejo impetuoso os tomou, ainda que não o demonstrassem, ou mesmo identificassem com precisão.
O encontro foi casual, surpreendente; todavia, amplamente desejado.

Partiu dela.
Sentia entre as grossas coxas a lubricidade, e a cada sentir, na intenção de procurar burlar seu bel prazer, pressionava as pernas, fazendo gerar o pompoar: Assim, de tempos em tempos – ainda a cada troca de olhar – se via com a boca entreaberta, trêmula, que fazia a língua correr pelos lábios. Traía, assim, a si mesma, pois a saliva úmida e quente da língua na boca vacilante a fazia querer devorá-lo com gana.

Não se tem conhecimento sobre o prazer dele neste momento, pois tratava-se de um clássico boêmio, acostumado a flertar pelas noites requintadas – ou nem tanto. Contudo, podemos aqui confirmar que, mais tarde, não desejava outra carne que não fosse aquela.

Após longo rito – para ela aquele protocolo durou uma eternidade – finalmente aproximaram-se.
A conversa – pura formalidade – era prosa solta. Era boa, ora como era! Mas, assim, como sem querer, as mãos se aproximavam. Um semi toque, um toque, uma contradição: um descaso muito bem elaborado.

Num pretexto de se ausentar por alguns instantes, o retorno triunfal: O pescoço pelado deu a deixa para a boca tocar na nuca suada por um prazer inenarrável. O aumento do pompoar, outra saliva de boca úmida num só corpo.
Alçaram as mãos, o toque quente, ressudado, que antes na mente de ambos era um prazer onipresente: Estava lá todo o tempo - emudecido, mas sentido.

A música existia: Fora, o som sensual, fazendo o corpo mexer e estremecer. Dentro, o som sexual, sentindo, cada um deles, a respiração de outrem dentro de si; a cobiça reprimida de arrancar as vestes e sentir pele com pele por completo era recíproca, acre, demasiada.

Com esforço charmoso, o lábio tocou o colo, sentindo cada batimento, cada gotícula de um suor que escorria de satisfação e obstinação, e um apetite mais que voraz.
Os dedos percorriam cabelos, com equilíbrio de veemência e cuidado, trazendo-a para perto de si, enroscando os corpos que viraram um só.

O local, ironicamente palco público e proibido, não fora suficiente para que ambos coibissem todo aquele regalo.
Ele queria percorrer-lhe o corpo, com mãos e boca para cruzar a estreita passagem; Ela, transtornada pela delícia do momento, tinha certeza de que aquilo não acabaria ali. Viraria sentimento. Sem saber em que grau, aspecto ou mesmo denominação ou alcunha, mas era sentimento.

Não se tem conhecimento sobre as intenções dele depois daquele momento, pois – de novo - tratava-se de um clássico boêmio, que se auto intitulava “pássaro livre”. 

O que se sabe é que ali, naquela noite, nasceu algo que, mais tarde, em pleno momento pandêmico, os marcou, em mente e corpo, para sempre. 

[Jade Rosa] - 31/05/20

*Imagem: "O beijo janela vista" de Edvard Munch - 1892.

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